
A Sereia como Metáfora Trans
Hans Christian Andersen; 1869.
Hans Christian Andersen pode parecer o nome de uma pessoa desconhecida. Contudo, mesmo que não familiarizado com sua alcunha, ele — ou mais especificamente suas obras — faz parte do nosso imaginário, sobretudo quando falamos de sereias.
Consagrado pela escrita, Andersen é o autor de inúmeros contos, cujo mais célebre é A Pequena Sereia. A história de 1837 acompanha a trajetória de uma criatura aquática que abdica da própria voz para alcançar um mundo que nunca a aceitará de fato, em prol de um amor impossível que, no final, não se concretiza. Diferente da versão animada, essa sereia da versão original não tem nome, voz, sexo visível e não possui alma, segundo a mitologia que a rege.

Fora essas pequenas incongruências que a mais famosa versão possui quando comparada com o conto original, a história é a mesma. Todos nós a conhecemos. O que talvez não seja de conhecimento geral é o contexto no qual ela foi escrita.
Segundo o que se conta, Andersen haveria enviado esse conto ao homem por quem estava apaixonado: Edvard Collin, que viria a se casar com uma mulher. Em suas cartas, o autor chega a dizer que o ama como uma “donzela da Calábria”. Logo, não é difícil de imaginar que a sereia surge como projeção de seu próprio desejo recusado, de sua inadequação romântica, social e corporal. Não se trata de mera alegoria ou um conto, e sim de uma história que ainda segue em vigor no que tange à vida de pessoas queer: o ato de amar e não ser amado.
Assim, não é de se espantar que a imagem da sereia tenha sido recuperada pela leitura queer. Corpos trans, em especial, encontram nela uma metáfora pungente: algo que não se define pelo genital e que, por meio de uma transformação, obtém a forma desejada. A água, onde ela habita, reforça essa metáfora. A água, afinal, não possui forma fixa: ela se molda ao recipiente que a contém, flui, escapa, dissolve limites. A experiência trans também desafia formas fixas e questiona os contornos da norma. Há, portanto, uma intimidade entre a fluidez da água e a fluidez de gênero. O corpo que se transforma encontra na água uma espécie de espelho possível.
A série documental I Am Jazz é um exemplo claro disso. Nela, acompanhamos a história real de Jazz Jennings, uma menina trans que, desde muito nova, se identificava com sereias. Jazz chegou até mesmo a fundar uma marca de caudas de sereia (Purple Rainbow Tails) para que outras crianças trans pudessem se tornar aquilo que já eram.
A fantasia, nesses casos, é meio de afirmação. O imaginário aquático permite uma liberdade que a rigidez do mundo seco não concede. A água, no universo simbólico, não só trans, mas queer como um todo. Ela é um elemento de dissolução das fronteiras normativas. E um espaço de intimidade.
Esse fascínio pela água atravessa também o cinema queer. Filmes como Hoje Eu Não Quero Voltar Sozinho, O Estranho no Lago e a animação Luca — mesmo que inconsciente — exploram, cada um à sua maneira, a presença da água como um espaço simbólico de desejo, descoberta e pertencimento. O livro The Cinema of the Swimming Pool oferece uma leitura crítica sobre essa recorrência, analisando como piscinas e corpos molhados criam zonas de suspensão das normas sociais e performáticas, sendo o cenário ideal para narrativas homoeróticas ou dissidentes.
No canal OraThiago, por meio do qual conhecemos esse livro, o youtuber comenta em um de seus vídeos-ensaio que “o que geralmente se diz sobre esse tópico é que existe um erotismo inerente à água e ao corpo molhado”, parafraseando o pensador Gabriel Pagnoni Bens. Thiago também nos conta que, segundo Bens, a água preserva a presença do corpo que já não o contém. A água que toca o corpo desejado é erotizada. Mas, além disso, a água funciona como espelho: nela, a pessoa pode se ver refletida em sua mais pura essência.

Thiago Guimarães, criador do canal OraThiago.
E talvez aí resida a potência mais íntima do conto de Andersen. Se o autor jamais pôde dividir o corpo, o quarto e o toque com aquele que amava. Contudo, ele pôde, por meio da ficção, dissolver-se como espuma e tocar o outro pelo simbolismo. A sereia não é apenas o altere go trágico de Andersen. Ela é o veículo através do qual ele se banha, ainda que apenas na linguagem, nos fluidos de um amor tórrido.

A sereia mergulha por ele. E é extremamente significativo que ela seja um críptideo aquático, pois nesse lugar concentra-se metáforas de erotismo. A sereia molha-se no desejo inconsciente do outro, funde-se, sem ser reconhecida. Na ausência de reciprocidade, resta-lhe o mar: a linguagem líquida onde corpos dissidentes ainda hoje se enxergam e se refugiam para amar.