Neck (Lee Miller and Man Ray - 1929)

Diz-se que a carne da sereia concede imortalidade. Segundo o folclore japonês, uma freira chamada Yao Bikuni, viveu oitocentos anos após consumir, por engano, a carne de um ningyo: uma espécie de sereia. Marcando o início tanto de um fardo quanto de uma maldição.

Esse mito ilustra como determinadas narrativas atribuem propriedades extraordinárias a certos alimentos, além que o fascínio por carnes e alimentos sagrados não se restringe apenas à cultura japonesa. Na tradição europeia, a carne do unicórnio é associada à pureza e à eternidade, sendo reservada apenas aos dignos. Em lendas africanas, alimentos mágicos aparecem como fonte de força ou sabedoria. Na mitologia grega, a ambrosia é o banquete reservado aos deuses. A recorrência desses temas evidencia uma obsessão humana comum: o desejo de transcender a carne comum, de prolongar a juventude, de tornar-se exceção biológica.

No imaginário católico, esse impulso se transforma em dogma. Existem relatos de santas que jejuavam até a transparência da pele, alimentando-se apenas da hóstia. Em algumas hagiografias, como nas visões de Catarina de Siena, a própria boca torna-se espaço de milagre: nela, o prepúcio de Cristo aparecia como símbolo máximo de fé. Uma mulher que não come — e que não deseja — é beatificada graças ao contato de uma parte do pênis em sua boca, mesmo que esse pênis seja divino.

Por oposição, a mulher que morde é punida. Eva provou o fruto. Yao Bikuni, a carne de uma sereia. Há uma linha que conecta essas figuras: todas pecaram com a boca ao consumir algo além do que um homem permitia. Assim, a boca da mulher se torna um território perigoso, onde ela canta, fala, seduz, mastiga e consome.

É a fenda que come e é comida. É a vagina no rosto.

Freud já havia apontado que a boca é o primeiro órgão de prazer, o lugar onde se formam os primeiros vínculos e apetites. Penetra-se a boca com comida, com palavras e com o falo, do mesmo modo que se penetra a vagina. Ambas engolem, ambas envolvem, ambas provocam medo. Por isso, a cultura sempre tentou controlar esses orifícios femininos, regulando o que podem receber, emitir e dizer. Evitando, assim, o estado de imortalidade, que aqui pode ser entendido não como longevidade literal, mas como autonomia, algo que escapa ao controle patriarcal.

O pescoço e a garganta da sereia são a entrada para esse território ambíguo. Curva sensível, órgão intermediário, ele carrega em si a tensão entre a fala e a sucção.

Em certas imagens, como em retratos da fotógrafa Lee Miller, o pescoço inclinado evoca tanto a ideia de prazer quanto de passividade. O gesto de arquear a cabeça revela uma imensa semelhança com o falo: há algo ereto e vulnerável ali, algo que convida ao toque. Há algo fálico no pescoço da mulher: tenso, vertical, frágil e pulsante. É sempre pela boca que se inicia o processo: seja a mordida, o canto ou o gemido após o gozo.

Anatomies  (Man Ray - 1930)

O homem deseja essa sereia pela boca, para lhe dizer coisas profanas e obscenas, babando como um lobo pronto para abocanhar essa carne com propriedades mágicas. O desejo, aqui, é tanto erótico quanto predatório. E o ato de morder, quando feito por um homem, carrega a marca do abuso. O chupão, símbolo juvenil de desejo, é também uma marca de posse, uma tentativa de silenciar a fala, afirmar um domínio e também atingir essa imortalidade.

Há um desejo masculino que não busca apenas penetrar a mulher, mas silenciá-la. E para isso, ele precisa primeiro atravessar sua boca. Seja com o pênis, com a comida, com a palavra de ordem, com a violência ou com a hóstia. Esse é o ciclo.

A boca da sereia, assim como sua carne, é temida porque ela engole e liberta. Quando Yao Bikuni comeu a carne da sereia no mito japonês, ela se tornou imortal: livre dos dogmas de uma igreja que cultua um semideus, não precisando mais ser fiel aos votos desse casamento místico. Mas, ao lhe enfiar o falo, a comida ou a ordem, o homem tenta calá-la, impedir que cante, que grite, que subverta a “ordem natural das coisas”.

O mito da carne de sereia traduz esse impulso.

É nesse ponto que a sereia se torna um criptídeo. Não por ser metade peixe, mas por ser indigesta. A mulher que não morre após ser comida. A mulher que envenena com a própria carne. A mulher que guarda dentes no fundo das duas gargantas: a superior ou a inferior.

Swallow - o desconforto do desejo (2019) - Calebe Lopes

A vagina dentata, figura mítica eternizada em um filme trash de terror, simboliza esse medo ancestral: de que, ao penetrar, o homem seja punido. No caso da sereia, esse temor se desloca: é a boca que morde. É a voz que castra. O grito que desvia o barco, a canção que afunda o navio. O mito expressa o medo masculino não apenas da sexualidade feminina, mas da fala feminina, porque a fala é também um ato de penetração, um modo de entrar no outro sem pedir licença e, principalmente, de levantar a voz contra um discurso opressor.

Assim, a carne da sereia não é desejada por seu sabor, mas por sua promessa: a de transformar quem a consome. Mas o preço é alto. Ninguém sai ileso de comer o que deveria apenas ser contemplado. Assim como ninguém sobrevive à mulher que não se deixa ser digerida ou calada.