
O Nascimento da Beleza
Créditos: Acervo familiar de Daniel Azevedo.
Enxergar beleza na vida só é possível quando entendemos que ela é fruto de um trauma. A beleza é, na verdade, uma resposta de autoproteção. Uma forma de suportar a existência.
No meu caso, só fui capaz de enxergar a beleza após ter sobrevivido. Após não ter morrido, graças a um transplante bem-sucedido.
Minha mãe diz que eu ainda não o processei. Que guardo, no inconsciente, esse trauma. De fato, não. Diferente dela, que fala — e até mesmo se pavoneia — sobre como suportou o transplante e como ainda lida com suas cicatrizes, ainda que seja no meu corpo que elas aparecem. Eu, ao contrário, não falo. Não digo nada. Apenas sinto e escrevo. Talvez seja exatamente nesse silêncio que se encontra a catarse que moldou aquilo que eu conheceria como belo.
E hoje tenho a certeza de que esse trauma me abriu sim as portas da beleza.
Até então, antes da cirurgia, não havia beleza. A vida era apenas uma grande academia, em todos os sentidos. Era um lugar de aprendizado, onde meus pais, por pena de um enfermo crônico, nunca negaram a oportunidade de estudar algo novo. Pude ler muito, consumir muito, fazer vários cursos, porque era a única coisa que teria, já que morreria e não havia cobranças sobre o futuro. Eu tinha todo o tempo do mundo, justamente por não ter o tempo da vida. Essa suspensão, ao mesmo tempo cruel e generosa, já carregava algo do conceito de sublime: quando a dor ultrapassa o suportável e, paradoxalmente, abre espaço para um tipo de beleza absoluta.
Era também uma academia em busca de vida: um exercício extremo para performar um “bem-estar” que não existia, em prol de não preocupar os outros. E, por fim, uma academia para crucificar a carne, ser digno da única forma de existência que me era possível: aquela aquém do plano terrestre.
Mas, depois de ter tido o prazo de validade renovado, a vida começou. Toda essa preparação me deu base para ver o belo se manifestar e ser sensível a ele. O trauma me fez viver, e morrer de uma forma diferente. Pois, agora, junto da beleza, surgiu o medo de não mais ser capaz de vê-la.
Hoje, a morte, pode surgir de qualquer lugar e ceifar os prazeres que descobri apenas depois do que vivi. O medo me paralisa e, ao mesmo tempo, me faz criar — através da Souedo por exemplo — uma espécie de legado, uma forma de levantar a voz em causas que antes não julgava importantes. Um dever por existir. E para deixar algo quando já não for possível ficar.
É uma pressão de ser e de fazer. Tanto para mim quanto pelos outros. E por quem me deu o fígado.
Às vezes, me pego pensando se isso foi, de fato, uma bênção ou uma maldição. Talvez a resposta esteja na própria ambiguidade dessa beleza que agora se manifesta ao meu redor: ela não existe sem o trauma que a sustenta. Se hoje consigo percebê-la, é porque carrego em mim a memória da morte.
A beleza é essa cicatriz luminosa que nunca se fecha. Mas que, ao permanecer aberta, me devolve a necessidade de criar e de eternizar algo que ainda não sei, ao certo, o que de fato seja.