
Fernando Pessoa: O arquiteto das palavras e os heterônimos como criptídeos
Créditos: Fernando Pessoa em 1914
Se alguns estilistas são chamados de arquitetos dos tecidos, como Balenciaga, podemos dizer que certos poetas são arquitetos das palavras. E Fernando Pessoa, com seus heterônimos, certamente merece essa alcunha.
Se pararmos para pensar, o próprio conceito de heterônimo se aproxima da ideia de críptideo: são figuras que existem entre mundos, entre identidades e fronteiras. São seres que, reais ou não, encontram no corpo de quem os cria — o de Pessoa, neste caso — um meio de se expressar. Como os criptídeos, eles existem mesmo que vistos como irreais.
Escrever poesia, então, não é apenas contar histórias, mas construir antologias únicas. Mesmo que a poesia trabalhe com temas já visitados, ela os ressignifica: revisitar pela palavra é reinterpretar, criando um nono universo. Pois a linguagem, mesmo quando fala do mesmo, nunca é idêntica.
Cada palavra é um caminho diferente. Mesmo sinônimos não são equivalentes porque, embora possam designar o mesmo, não são o mesmo. Como escreveu Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Pessoa, considerado por ele seu mestre:
“Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.”
Assim também acontece com a roupa. Cada peça, como cada palavra, compõe um léxico e, para que faça sentido, precisa ser entendida por completo. Parafraseando meu professor de teatro, Kiko Marques: “Não se diz ‘faca’ da mesma forma que se diz ‘mãe’.” A frase é poderosa porque revela que cada palavra carrega não só um significado, mas uma intenção específica, mesmo que não a percebamos de imediato. Com as roupas acontece o mesmo: dois vestidos vermelhos não são iguais só porque são vestidos ou vermelhos. Eles são exatamente diferentes por isso: por serem vestidos e por serem vermelhos. Não é o todo que define a peça, mas a forma como cada parte se articula, criando uma significância única.
Aprofundei minha leitura da obra de Pessoa graças a esse professor. Trabalhei com ele em sala de aula e pude ver como, ao longo da vida, ele se dedicou não a Pessoa como homem, mas a Pessoa como obra: um sistema, uma arquitetura complexa de vozes e identidades.
Ele nos contou que, em determinado momento da sua trajetória, ele acreditou que não sabia se comunicar, que não sabia falar. Buscou, então, na poesia, um caminho. Aliada ao trabalho com profissionais da cena teatral e da fala, a poesia se tornou, para ele, uma forma de expressar aquilo que as palavras realmente dizem.
Assim, e aqui a correlação se completa com o nosso tema, ele encontrou a própria voz. como uma sereia num conto de fadas, que, ao nomear sua linguagem, conquista também sua forma.
Mas há um outro aspecto essencial da obra de Pessoa: sua capacidade única de criar imagens para falar sobre sentimentos complexos, muitas vezes inconfessáveis. Seja através da contenção bucólica e límpida de Caeiro, seja pelo excesso e pela explosão modernista de Álvaro de Campos, ele conseguiu expurgar emoções, angústias, dores e transformá-las em imagens poéticas que, de tão precisas, nos forçam a confrontar aquilo que muitas vezes não queremos sequer pensar.
O Livro do Desassossego, que assinou com outro dos seus álteres egos, Bernardo Soares, é talvez o ápice dessa pulsão: um monumento à fragmentação, à hesitação, à vida que nunca se vive plenamente, mas se observa e se registra com exaustão. É um livro que não pretende ser linear, nem oferecer respostas. É, antes, um mapa disforme da alma, um atlas emocional de alguém que se sente estrangeiro de si mesmo: um críptideo.
E talvez seja justamente isso que torna Pessoa tão fundamental: ele não tenta organizar ou resolver os sentimentos, mas os expõe em sua forma mais crua. que cada heterônimo, cada poema, cada fragmento seja uma tentativa de dizer aquilo que não pode ser dito de outro modo.
Como os criptídeos, suas palavras existem entre o real e o ficcional. E é nesse espaço de ambiguidade, de incompletude, que a sua obra continua a reverberar, como um convite para que também possamos reconhecer — e, talvez, até aceitar — as múltiplas vozes, máscaras e lacunas que nos constituem