
O Leite das Sereias: Uma Reflexão Poética sobre Maternidade, Mitologia e Cuidado
Créditos da imagem da capa: A sereia amamentando seus filhos – Oficina de Giulio Romano, século XVI
Há um leite que não vem da terra, e sim do mar.
Dizem que, nas profundezas, uma criatura alimenta seus filhos com o que escorre de seus seios salgados. A criatura é uma sereia. E seu leite, assim como os de inúmeras mulheres, nutre e transforma. A sereia também é uma mãe.
Nesta semana em que celebramos o materno, a Souedo volta o olhar para essas entidades híbridas que existem entre mundos: as sereias, figuras centrais da nossa primeira coleção. De certa forma, mães e sereias dividem a mesma dimensão: são criptídeos. Elas carregam a capacidade de originar vida e contar histórias. E, mesmo quando são silenciadas, continuam a cantar e a cuidar.
Esse bálsamo branco continua a nos alimentar. Ainda escorre, invisível, daquelas que vieram antes de nós: mães, das mais diversas formas. Mães que surgiram do desconhecido, como as do Norte. Aquelas que criaram com ferocidade. Também aquelas que não foram dóceis, nem prontas, nem celebradas. Que amaram e educaram como puderam. Mães que, mesmo silenciadas (e muitas vezes negligenciadas), ainda nos amamentaram com seu leite.
Antes da figura da sereia ter sua imagem cristalizada na sociedade contemporânea, já era possível encontrar, na mitologia, um ser que se relacionava com tal temática: Mélusine.
Junta de outra deidade, ela é uma das figuras fundadoras do que viria a ser conhecida como sereia. Meia mulher, meia serpente, Mélusine foi uma esposa que impôs uma única condição: que o marido nunca a visse aos sábados, quando sua verdadeira forma emergia. Naturalmente, ele quebra o pacto, ocasionando sua fuga. Mas não sem antes deixar filhos
Nesse contexto, Mélusine é mais do que uma lenda. É a matriarca fundadora de uma linhagem. Seu leite era tido como capaz de apagar os incêndios do Vesúvio. Assim como o leite da Virgem, que, no imaginário medieval cristão, era capaz de apagar as chamas do Purgatório. Ambos os leites funcionam como bálsamos redentores.
Créditos: Pedro Machuca, A Virgem e as Almas do Purgatório (1517)
Na cultura contemporânea, quando a força feminina não é capaz de ser apagada como nos exemplos acima, ela é domesticada. O que antes era leite, torna-se espuma. Hoje, Mélusine reaparece apenas no logotipo da Starbucks. O leite, outrora símbolo de salvação, potência geradora, alimento e feitiço, foi reduzido a ornamento.
A potência da sereia só serve como storytelling de uma marca: cuidadosamente higienizado, suavizado e decorativo.
Mesmo assim, ela continua a nos alimentar.
Esse leite representa também o cuidado silencioso, a nutrição oferecida mesmo em meio à dor, a força de uma figura que nunca foi apenas um corpo a ser admirado nem um mito a ser temido, mas uma fonte de vida.
Talvez seja por isso que o mito da sereia, mesmo que reduzido ao símbolo gráfico, a uma data comercial ou a espuma vegetal, ainda reapareça.
Na Souedo, acreditamos que a maternidade não precisa ser sagrada para ser profunda. Que há dor no parto e na ausência. Que há beleza na mulher que foi mãe e na mulher que escolheu não ser. E que, entre todas as figuras mitológicas, talvez nenhuma se pareça tanto com uma mãe quanto uma sereia: incompreendida, potente, marginal e cheia de voz.