Agora que o primeiro capítulo da Souedo foi lançado, podemos finalmente retornar à narrativa que sempre esteve presente, ainda que de forma submersa. Uma narrativa que começa com a imagem da sereia e se expande pelas águas turvas da nossa coleção inaugural, “Criptídeos”. Dentro desse universo a ser trançado, a sereia foi escolhida como figura central, tanto como musa quanto como criatura, pois percebemos que ela carrega em si todas as tensões que nos atravessam enquanto marca. Nossa sereia fala sobre aquilo que se desenha entre o desejo e a deformação, entre o mito e o corpo, entre o sublime e o que já não cabe no enquadramento da beleza.

Entre tantas referências possíveis, há uma obra que nos ajuda a compreender as camadas simbólicas desse tema. Um filme desconfortável e por muitos considerado perturbador, ainda que considerado fraco dentro da própria franquia: Mermaid in the Manhole (1988).

Créditos: poster do filme Mermaid in the Manhole (1988).

Dirigido por Hideshi Hino, ele faz parte da série japonesa Guinea Pig. Nele, um artista encontra uma sereia moribunda vivendo nos esgotos da cidade. Seu corpo já está em decomposição. Ele a leva para casa, mas não por compaixão, e sim para pintá-la. E, sem se importar com sua dor, começa sua composição artística.

A sinopse parece extrema, mas é um espelho distorcido da história da arte. É assim que, por séculos, o feminino foi representado: como matéria estética. Há mais mulheres nuas nos museus do que artistas mulheres nos catálogos. Os corpos femininos foram, antes de tudo, musas. Inspiraram quadros, esculturas, versos. Mas não escreveram a própria narrativa.

Essa assimetria foi escancarada, entre outras ações, pelas Guerrilla Girls, coletivo feminista de artistas anônimas que, em campanhas globais, questiona o apagamento das mulheres nas artes. Uma versão brasileira de um de seus pôsteres mais icônicos foi exibida no MASP, estampando a pergunta: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?”. A resposta estava nos dados: apenas 6% dos artistas do acervo eram mulheres, enquanto 60% dos nus exibidos eram femininos.

A cultura ocidental reiterou essa estrutura inúmeras vezes. O quadro L’Origine du monde (1866), de Gustave Courbet, é um exemplo explícito disso. A obra mostra, em primeiro plano, a genitália feminina. Mas pouco se diz sobre quem era a modelo. Já no movimento dos pré-rafaelitas, as musas, mesmo que imortalizadas em suas telas, tiveram vidas com desfechos trágicos. E, como essas já citadas, Camille Claudel, escultora de talento inegável, foi por muito tempo lembrada apenas como amante de Rodin, desaparecendo sob a sombra do escultor.

O que o filme faz, com sua estética grotesca, é radicalizar essa operação. A sereia não morre por acaso. Ela morre porque é contemplada, mas não escutada. Porque seu sofrimento vira tinta. A pintura a eterniza apenas quando já não há mais voz.

Créditos:Frame do filme Mermaid in the Manhole (1988).

A sereia, talvez mais do que qualquer outro ser mitológico, condensa as ambiguidades e tensões que compõem o panteão dos chamados criptídeos. Essas criaturas cuja existência é negada oficialmente, mas que continuam a ser vistas, relatadas, temidas ou ridicularizadas.

No Brasil, especialmente na região Norte, ela não é um vestígio europeu ou apenas tema de museus, mas uma presença viva, entrelaçada ao cotidiano dos rios e da oralidade, carregando a ancestralidade feminina presente nas águas amazônicas.

Neste contexto, a sereia é apresentada como elemento de memória que, ao longo do tempo, foi estetizado e difundido. Sua representação acompanha a lógica de apagamento simbólico a que também foram submetidos os povos originários da floresta. Como elas, os indígenas foram convertidos em imagem. Ambos passaram a ser lidos principalmente como ornamento ou exotismo, tolerados na cultura dominante enquanto permanecessem distantes ou domesticados no meio de tantos outros seres mágicos.

Durante muito tempo, tudo o que vinha do Norte foi interpretado como algo mítico e primitivo. Os relatos europeus descreviam indígenas como corpos ambíguos, entre o humano e o animal, entre o sujeito e a ameaça. Assim como o peixe-boi virou sereia, o nativo virou ameaça. Ou, com alguma sorte, virou folclore.

Assim como a sereia de Mermaid in the Manhole é retirada do esgoto apenas para ser observada e representada, os corpos indígenas foram arrancados de seus contextos para servirem como curiosidade, espetáculo ou estudo. Seus saberes, apagados. Suas vozes, ignoradas. Seus corpos, oferecidos à contemplação exótica, como se fossem relíquias de um tempo alheio.

Essas interpretações foram reforçadas por séculos de distorções visuais, científicas e culturais. Os mapas de navegação antigos estavam repletos de monstros marinhos desenhados onde hoje sabemos haver rios, enquanto os primeiros antropólogos e exploradores europeus registravam os povos originários como figuras indecifráveis, quase sempre à beira da monstruosidade. Era comum a dúvida se esses corpos pertenciam mesmo ao mundo humano ou à categoria de criaturas humanoides. Um exemplo emblemático é o relato do alemão Hans Staden, no século XVI, que descreveu com minúcias um ritual antropofágico dos Tupinambás. Seu livro, um sucesso europeu, ajudou a cristalizar a ideia do indígena como bárbaro, selvagem e sanguinário.

Esse mesmo processo de desumanização se estendeu ao plano material e simbólico. O caso do Manto Tupinambá é uma das provas mais silenciosas disso. Peça sagrada feita com penas vermelhas de guarás e utilizada em rituais cerimoniais, foi levada da América pelos europeus e permaneceu por séculos em museus estrangeiros, transformada em relíquia exótica, arrancada do seu contexto e mantida à distância, como tudo que o olhar colonial preferiu exibir sem escutar.

Essa operação de esvaziamento foi seguida por uma estética da romantização. A “índia dos lábios de mel”, exaltada em nossa literatura, é apenas mais uma variação dessa musa inventada e desse povo silenciado. A mulher indígena, como tantas outras mulheres na história da arte, foi aceita como símbolo, mas negada como sujeito.

Hoje, o Norte segue sendo lido como espaço de mistério, desde que continue distante. Os corpos que ali existem, como os criptídeos, só são tolerados enquanto permanecem ocultos ou inofensivos.

É justamente nesse ponto que Mermaid in the Manhole se torna mais do que um filme extremo. Ele não narra apenas a decomposição de uma criatura, mas desmonta a própria lógica de contemplação que estruturou séculos de representação. A sereia, deteriorada e ignorada, revela a engrenagem do olhar que transforma corpos em símbolos e sofrimento em forma.

A Souedo escolhe trazê-la como personagem principal da coleção Criptídeos não como apenas mais uma musa, mas como um fragmento de algo que transcende os limites do seu corpo. Uma figura que carrega, em suas escamas e cicatrizes, os traços do que ainda precisa ser visto para além da pintura de um quadro.