Há um ditado popular que diz que “falar, até papagaio fala”. E ele não poderia estar mais certo.

À primeira vista, pode parecer apenas um jargão usado em discussões acaloradas, mas, ao analisá-lo com mais precisão, percebe-se que se trata de algo mais — ou, ao menos, não se limita a isso. Na verdade, é uma frase que permite uma análise profunda sobre a proliferação da mensagem na sociedade atual e sobre o valor da fala — se é que ela ainda possui algum.

Partindo do pressuposto de que até seres desprovidos da capacidade de raciocínio, como os papagaios, conseguem emitir sons que imitam a fala humana, também podemos afirmar o oposto: há fala sem comunicação. Há homens que apenas repetem jargões, recitam livros, sem conectar ideias, sem elaborar novos pensamentos a partir do arcabouço intelectual que os habita. Tornam-se semelhantes aos corvos, assombrando os outros com ecos vazios, como no conto homônimo de Edgar Allan Poe, em que a ave repete, sem variação, o mesmo som sombrio: “Nevermore”:

“Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore—
Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”

Outro ser, que não pertence a nenhuma das espécies citadas e é muito caro à narrativa da Souedo, é a sereia, cujo mito mais célebre a apresenta como alguém que não pode falar.

Tanto no conto original de Hans Christian Andersen quanto na adaptação animada de 1989 dos Estúdios Disney, acompanhamos a jornada de uma sereia que, ao se apaixonar por um humano, renuncia à própria voz em troca de um par de pernas. Tudo para tentar conquistar o coração daquele mortal em terra firme.

Ariel, a pequena sereia, é uma das raras protagonistas que percorre quase toda sua narrativa sem conseguir expressar verbalmente qualquer sentimento. Sabemos o que ela sente pelas descrições dos outros, mas nunca pela sua própria voz.

Não é difícil, portanto, afirmar que esse conto não se sustenta, aos olhos da sociedade contemporânea, como uma boa representação feminina. E de fato, não é. É inegável o impacto inconsciente que narrativas como essa podem exercer sobre meninas que crescem consumindo contos de fadas como se fossem espelhos do amor ideal e, sobretudo, de como a mulher ideal deveria agir.

Contudo, ao analisarmos esse conto pela ótica dos criptídeos, e não apenas da crítica de gênero, surgem outras camadas possíveis de leitura capazes de enriquecer o discurso que estamos construindo.

Afinal, mesmo que Ariel falasse, ela não seria ouvida. Sua exclusão não se deve apenas ao fato de ser mulher, mas por não ser vista como um semelhante. A sereia é um outro: Um outro corpo, um ser mitológico, uma entidade que desafia os limites do que é considerado humano. E, que no fim, não será considerado, não importa o quanto tente. Logo, sua forma não é reconhecida como legítima. Ela pode até estar entre os humanos, mas não pertence a eles. E é justamente essa não-pertença que a torna invisível, inaudível, ilegível.

O que à primeira vista pareceria ser apenas uma história sobre amor, sacrifício e má representação feminina é, na verdade, uma metáfora pungente sobre os corpos que renunciam a si para caber no mundo em que não serão ouvidos ou vistos.

Os criptídeos, como a sereia, são figuras que desafiam a lógica da visibilidade. São desacreditados, não porque não falam, mas porque o mundo não crê que eles existam e possam se expressar.

Nesta nova discussão, surgem diversos questionamentos provenientes da figura da sereia, tais como: como falar, quando não há quem escute? Como afirmar a própria existência diante da descrença alheia? E, por fim, uma questão central e mais inquietante de todas: a capacidade de se expressar verbalmente concede protagonismo ou apenas reforça a posição daqueles que já possuem legitimidade para falar?

Acreditar que a fala, por si só, garante protagonismo é ignorar as estruturas que definem quem merece ser escutado. Há quem fale — e fale muito — sem nunca ser ouvido de verdade. E há quem, mesmo em silêncio, cause ruídos. A sereia é exemplo disso. Mesmo sem voz, seu corpo dissonante perturba a ordem. Ao contrário dos que performam discursos eloquentes para garantir lugar no centro, ela apenas existe. E isso basta para que seja, por vias não ortodoxas, escutada.

Essa existência silenciosa é, por si só, política. O simples ato de ocupar um espaço sem explicações, sem defesas, sem justificativas é um gesto radical. Não se trata de ausência de discurso, mas de um outro tipo de linguagem. Uma linguagem que se recusa a se moldar à gramática dominante. Não há necessidade de performance, nem de oratória impecável, para que uma presença seja legítima. E talvez justamente por não caber nos moldes, essa presença seja ainda mais potente. Afinal, quem se ajusta demais desaparece na paisagem, tornando-se parte do cardume massificado.

Então, sim: Ariel poderia falar e ainda assim não seria compreendida devido a uma incomunicabilidade estrutural. Ela é um críptideo. Um corpo sem tradução. Um corpo para o qual não há escuta porque não há fé na sua existência. A maioria das pessoas não crê nela. E aquilo em que não se crê, é negado a possiblidade de uma existência plena.

É por isso que os criptídeos, como a sereia, não performam a existência: eles simplesmente são. E isso já é o suficiente para desestabilizar as normas. Porque viver sem o aval de quem detém a norma é um ato de resistência. É escolher não explicar, não convencer, não se justificar e ainda assim continuar ali, flutuando no limite entre o delírio e a realidade. Entre o mito e a carne. Entre o que o mundo nega e aquilo que, silenciosamente, insiste em existir.

Retornando ao conto da Pequena Sereia, mais especificamente à sua versão original escrita por Hans Christian Andersen, vemos que, ao perceber que o príncipe se casará com outra mulher, a sereia é encorajada por suas irmãs a matá-lo com uma adaga mágica e assim romper o feitiço. Mas ela recusa. Não mata, não fere, não se vinga. Em vez disso, desfaz-se em espuma.

É só nesse gesto que ela é, enfim, acolhida por um outro plano, o das “filhas do ar”, onde, à margem, encontra um caminho possível de existência.

Há algo de brutal e belo nisso: o corpo que não pode ser amado na terra vira névoa. A sereia não é aceita como humana, tampouco retorna ao mar. Em vez disso, é recebida por um terceiro espaço. Um espaço que não exige explicação, nem forma definida. Um lugar onde a escuta não depende da fala, nem da forma.

Talvez os corpos dissonantes, que não cabem nas margens estreitas do humano, estejam destinados a esse tipo de transcendência. Talvez viver como críptideo seja negar a própria humanidade tal como foi definida e, a partir disso, criar um espaço possível junto de outros seres emudecidos, onde o diálogo finalmente possa acontecer.

Mas isso não significa desistir de estar presente nos espaços onde esses corpos são negados. Pelo contrário: é reivindicar, em comunidade, que suas vozes também sejam escutadas. É construir, coletivamente, um mundo onde sereias e humanos possam existir lado a lado, mesmo que isso ainda soe como um delírio.